Por: Emiliano José em BRASIL 247
É muito difícil aprender
as lições da história enquanto ela se desenvolve. As evidências saltam aos
olhos para alguns, e dissolvem-se no ar para tantos outros. Falo assim ao
reportar-me ao episódio dos rolezinhos, nome dado à movimentação da juventude
pobre de algumas capitais. Os jovens queriam contemplar, quem sabe aqui e ali
até comprar, aqueles obscuros objetos do desejo a cada segundo ofertados pela
publicidade. Obscuros, e nem tanto. Ou obscuros em alguns casos porque
inalcançáveis. Mas, por que não ter o direito de contemplar? Lembro-me de
Baudelaire ou de Zola: talvez, entre outros aspectos da luta anunciada pelos
rolezinhos, esteja o do direito à vitrine. Por incrível que pareça.
Os
mais velhos, como eu, se deslumbraram quando jovens com as vitrines coloridas
das ruas. Recordo-me de um paletó, isso, só um paletó, e era marrom claro,
exibido numa das lojas da rua Benjamin Constant. Era office-boy do Banco
Comercial do Brasil, morava na periferia da capital paulista, no Jaçanã.
Parava, olhava, desejava. Era uma maravilha contemplar o paletó. Que me
importava não pudesse comprá-lo? As vitrines foram transferidas na maior parte
para os shoppings, esses monumentos do consumo infensos ao burburinho das ruas,
ou que se pretendem assim, isolados do mundo dos pobres. O Brasil está mudando,
e há shoppings que não se apercebem.
Nos governos de Lula e de Dilma, houve um extraordinário
crescimento do mercado interno. Houve distribuição de renda. Houve a ascensão
dos mais pobres a condições mais dignas. Deu-se que o mercado brasileiro – para
ficar nessa terminologia – não se restringe mais a coisa de 30 milhões de
pessoas. As pessoas compram muito mais. E a juventude cuja renda não permite a
aquisição desse estonteante acervo de novos objetos do desejo, ao menos
pretende fazer a visitação. Olhar a parafernália eletrônica de última geração,
os tênis que tudo podem, as roupas de grife, os notebooks ,
as televisões tela plana, esse admirável mundo novo apresentado por um
capitalismo que não cessa de se reproduzir.
E
mais: essa juventude pretende que a cidade seja sua. Também sua. Ou os
shoppings não se querem cidade? Não, os empresários não podem se iludir. Por
mais que tentem ampliar as barreiras, são cidade. Fazem parte dela,
constituem-na. Lembro agora de Marx: deixa-se tudo (formalmente) à decisão das
maiorias, e não se quer que as maiorias ajam? Quando os de cima tocam música,
dançam, fazem suas festas, o que querem? Que os de baixo não dancem?
Nada
disso, senhoras e senhores! Os meninos, as meninas, com seu funk, com suas
roupas alegres, com o corpo movimentando-se com muita leveza, só querem dar um
role. Não querem agredir ninguém: os rolezinhos evidenciam a moçada saindo de
suas casas, e ganhando a rua, tomando conta de sua cidade, e os shoppings
também são sua cidade. Os meninos das periferias de nossas cidades não querem
abafar ninguém, só querem mostrar que fazem samba também, como Noel Rosa no seu
Palpite Infeliz, tão atual.
Outra
vez, e o faço com muita frequência, volto a Paulinho da Viola: tá legal, eu
aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim. Como é possível
pretender reprimir o ir e vir dessa moçada? Predomina uma visão tacanha,
pequena, incapaz de compreender o novo País que surge, uma visão ainda presa
aos preconceitos da Casa Grande, uma visão de criminalização da pobreza, de
considerar os pobres como classes perigosas. Noel Rosa: que palpite infeliz,
quem é você que não sabe o que diz? É, o sambista tinha razão: eu já chamei
você pra ver, você não viu porque não quis... pra que ligar a quem não sabe
aonde tem o seu nariz? Uma burguesia tacanha, incapaz até de compreender o
alargamento do mercado. No elementar do elementar, essa repressão é
absolutamente inconstitucional. É ilegal e imoral.
E
constitui um ataque às expectativas de nossa juventude. Será que os senhores
dos shoppings não sacam que até agora ela não quis quebrar as vitrines? Que só
quis flanar pelos shoppings? A inconsciência é tão grande a ponto de não
perceber que estão apagando incêndio com gasolina? Não se lembram do que
ocorreu nas jornadas de junho do ano passado? Não se recordam do governador
Alckmin mandando baixar o pau na meninada, estopim para uma das maiores
movimentações de multidões dos últimos tempos? Os senhores do shopping tratam a
meninada e seus rolezinhos como uma invasão de bárbaros. E não é. Querem
somente, insisto, tomar de volta a sua cidade.
Claro,
uma análise mais cuidadosa poderia nos levar aos desatinos da sociedade de
consumo, de um capitalismo que faz um festival mirabolante de ofertas, que
pretende que todos consumam, mas que teme a multidão, nem que ela tenha também
a possibilidade de comprar, pouco que seja. Uma sociedade ultraindividualista,
da qual talvez os shoppings sejam o seu maior símbolo, eles por si sós, um
monumento à exclusão, ilhas no interior das cidades, e pretendendo que a cidade
pobre não os invada. Gostam da ideia de que só a elite possa olhar suas
vitrines, percorrer suas lojas, comprar. Pobre não é benvindo, e pior ainda se
jovem.
Essa meninada é o novo Brasil. A consolidação da democracia passa pelo diálogo
permanente com ela. Gostei quando li que o prefeito Haddad quer conversar com
essa moçada. O caminho não é o de reprimir. É o de dar-lhe liberdade ampla –
afinal, o que fizeram de mal nesse caso dos rolezinhos, qual o crime cometido?
–, aprender com ela, ouvir, compreender seus anseios, ver que futuro se desenha
a partir dela.
Não
se mate nossa esperança. Não se reprima nosso futuro. Não se ataque tanto sonho
abrigado na cabeça de nossa juventude. Que floresçam rolezinhos. Que se lotem
os shoppings. Que se garanta o direito à vitrine, ao ir e vir, o direito à
cidade. Que não se sufoque o desejo. O desejo, quando sufocado, é como água:
sempre encontra caminhos para se manifestar. Melhor conversar, melhor abrir
portas, melhor ouvir, melhor entender. Melhor garantir o direito à cidade e
suprimir as ilhas de exclusão.
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