Em: geografiaetal.blogspot.com.br
Como já dizia um velho amigo, tudo na vida é política.
A
definição do Arcebispo de Buenos Aires e primado da Argentina, o jesuíta Jorge
Mario Bergoglio, de 76 anos, como o papa sucessor de Bento XVI não foge à regra
do jogo de interesses que envolvem pequenas ou grandes decisões.
Por
mais que religião seja um tema delicado de ser abordado, certas situações não
podem ser omitidas sob o manto da ignorância, principalmente se a estratégia
e os diferentes critérios considerados, entre eles o geográfico, para a
escolha de um conservador como Sumo Pontífice da Igreja desapontam por não
acenarem com a mais remota possibilidade de mudanças e afetam diretamente a
mais pura, bem intencionada e genuína fé de milhões de pessoas.
Leia
a seguir o texto premonitório do jornalista argentino Martín Granovsky, do Página/12, reproduzido na Carta Maior, escrito pouco antes do anúncio do cardeal Bergoglio como o novo líder
da Igreja Católica.
Papa da América do Sul, não obrigado
Como
antes ocorreu com o argentino Leonardo Sandri, agora o brasileiro Odilo Scherer
aparece como um dos cardeais a quem a nobreza vaticana poderia eleger Papa.
Perdão, mas não se trata de futebol. Nenhum orgulho nacional está em jogo. E tampouco um orgulho sul-americano.
Muito pelo contrário: a pior coisa que poderia acontecer para a América do Sul
seria a eleição de um papa daqui. Mais ainda quando se leva em conta que os
cardeais do Brasil e da Argentina são conservadores que, nos últimos anos,
dedicaram parte de seus esforços a questionar os processos políticos de reforma
social nos dois principais países da região.
No
Brasil, os bispos recebem o tratamento de Dom. O gaúcho Dom Odilo Scherer
nasceu em 21 de setembro de 1949, no Estado do Rio Grande do Sul. Tem 63 anos.
É um dos cardeais ordenados por Bento XVI em 2007, o mesmo ano em que foi
designado arcebispo de São Paulo. Sua nomeação consolidou o deslocamento dos
franciscanos das direções das dioceses brasileiras. Um deles foi Aloisio
Lorscheider, ungido bispo em 1962 pelo papa João XXIII e cardeal em 1976 pelo
papa Paulo VI, os dois pontífices do Vaticano II que se reuniu entre 1962 e
1965 para modernizar a Igreja.
Outro
franciscano foi Paulo Evaristo Arns, bispo e cardeal por decisão de Paulo VI.
Aposentado e em oração, aos 91 anos, Arns está completando quatro décadas como
cardeal. Obviamente não integrou o pelotão de eleitores porque já passou há
muito dos 80. Dom Paulo foi dirigente da organização Tortura Nunca Mais, do
Brasil. Frei Betto, um dos fundadores das Comunidades Eclesiais de Base, contou
que entre os devotos de Cristo e São Francisco de Assis, esteve sempre Luiz
Inácio Lula da Silva. Leonardo Boff, o teólogo condenado ao silêncio pela
Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição), costuma se definir
como “católico, apostólico e franciscano”, porque “romano” refere-se a um lugar
e não tem relação alguma com o espírito do cristianismo.
Ao
contrário de bispos como Dom Aloisio, Dom Paulo e o célebre Dom Helder Câmara,
Dom Odilo não foi de modo algum próximo à Teologia da Libertação nem esteve com
os cristãos das comunidades de base que, junto com militantes de esquerda e
dirigentes sindicais, foram uma das vertentes fundadoras do Partido dos
Trabalhadores, em 1980. Ao invés disso, Scherer representou o castigo com que a
Santa Sé de João Paulo II e Bento XVI quis domesticar a hierarquia eclesiástica
brasileira.
Em 2005, a morte de João Paulo II e a escolha do
sucessor coincidiu com o ano mais crítico do primeiro governo Lula, que havia
assumido no dia 10 de janeiro de 2003. Em abril de 2005, ainda não havia
emergido o escândalo do chamado “mensalão”, que provocou inclusive a renúncia
do chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu. Mas Lula estava na metade do seu
primeiro mandato e a oposição preparava argumentos e candidatos para a campanha
de 2006. O Partido da Socialdemocracia Brasileira, o PSDB do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), terminou indicando Geraldo Alckmin,
então governador de São Paulo, cargo que hoje ocupa pela terceira vez. Alckmin
é um membro destacado da Opus Dei, a instituição criada por José María Escrivá
de Balaguer, um admirador do ditador espanhol Francisco Franco, que na década
de 1960 incorporou membros da Opus na gestão econômica e financeira do Estado.
Em
1958, Escrivá disse a Franco: “Ainda que afastado de toda atividade política,
não pude deixar de me alegrar, como sacerdote e como espanhol, de que a voz
autorizada do chefe do Estado proclame que a Nação espanhola considera como
questão de honra o acatamento da Lei de Deus segundo a doutrina da Santa Igreja
Católica, Apostólica e Romana, a única e verdade e fé inseparável da
consciência nacional que inspirará sua legislação. Na fidelidade à tradição
católica de nosso povo se encontrará sempre, junto com a benção divina para as
pessoas constituídas em autoridade, a melhor garantia de acerto nos atos de
governo, e na segurança de uma justa e duradoura paz no seio da comunidade
nacional”.
Em
2010, o indicado pelo PSDB para ser derrotado pelo PT foi José Serra, o mesmo
candidato derrotado por Lula em 2002. Conseguirá Alckmin outro turno como
desafiante da provável candidata à reeleição Dilma Rousseff, em 2014? O
governador tem a mão suas cabalas. No Palácio dos bandeirantes, sede do governo
estadual, há uma cópia da primeira edição do livro “Camino”, de Escrivá de
Balaguer, com uma dedicatória estampada depois da frase “Victoria”. A vitória a
que se refere o livro é a matança de republicanos por parte do bando nacional
na Guerra Civil Espanhola, travada entre 1936 e 1939.
Encarregado
da maior diocese católica da América do Sul, Scherer é um conservador que
admira Joseph Ratzinger. Em 2007, enquanto preparava a viagem de Bento XVI ao
Brasil, o país com maior número de católicos do mundo, defendeu as posições
doutrinárias da hierarquia vaticana sobre a vida cotidiana desta maneira:
“Entendo as dificuldades que existem em compreender a posição do Papa em um
mundo controvertido, de diversidade de pensamento, de opiniões, pluralidade,
mas não é competência da Igreja mudar o Evangelho”.
Scherer
estava sintonizado com a posição do Papa. Na coletiva de imprensa concedida
dentro do avião, durante sua viagem ao Brasil, Ratzinger justificou a
excomunhão em caso de responsabilidade por aborto, com fundamento no Direito
Canônico, e se mostrou preocupado com a expansão evangélica cristã no Brasil.
Disse que por um lado respondia a “uma difundida sede de Deus” e, por outro, á
busca de atender “a quem se apresenta e promete soluções para os problemas de
sua vida cotidiana”. Sobre a Teologia da Libertação, condenada por ele desde
que chefiava a Inquisição, Ratzinger disse que “com a mudança da situação
política, mudou também profundamente a situação da teologia da Libertação e
agora é evidente que esses milenarismos fáceis, que prometem no imediato, como
consequência da revolução, as condições completas para uma vida justa, estavam
equivocados”.
Em
sua visita, Ratzinger condenou o aborto, apoiado então de maneira indireta pelo
ministro da Saúde de Lula, José Gomes Temporão, que propôs a convocação de um
plebiscito. Ainda que não tenha convocado esse plebiscito nem enviado um
projeto ao Congresso, Lula comemorou a visita de Bento XVI lançando, duas
semanas depois da partida do Papa do Brasil, um grande plano de entrega de contraconceptivos
para os pobres.
Pressionado
pelo crescimento dos evangélicos, Scherer oscilou desde 2003 entre criticar os
governos do PT por uma suposta desatenção em relação aos problemas sociais e,
ao mesmo tempo, não cair no questionamento selvagem porque a maioria dos fieis,
em especial dos setores mais vulneráveis, vota no PT.
Até
agora a História revela que os papas não trazem surpresas. Como pontífices não
terminam sendo diferentes do que pensavam e atuavam enquanto eram bispos ou
cardeais. Assim ocorreu com o progressista João XXIII, com o centrista Paulo
VI, com o conservador João Paulo II sob quem floresceram os negócios do Banco
Ambrosiano e com o ortodoxo Benedito XVI, braço direito de Karol Wojytila para
questões doutrinárias.
Se
esta comprovação histórica se mantiver, e para além de como seja ordenado o
novo papa, é possível imaginar que um maior nível de ativismo na direção da
América Latina se guiaria por preceitos rígidos, opostos a uma maior separação
entre a Igreja e o Estado e reativos à perda de influência política da
hierarquia da Igreja em bolsões importantes do poder.
Todas
essas questões são independentes de como cada um exerce sua religiosidade ou
seu ateísmo, e inclusive de como a exercem aqueles que têm vocação de
experimentá-la coletivamente. O problema não é a religião, mas sim sua relação
com o Estado.
A
Argentina, por exemplo, introduziu na reforma constitucional de 1994 apossibilidade de que um
presidente possa não ser católico, mas manteve o artigo segundo: “O governo
federal sustenta o culto católico apostólico romano”.
Desde 2003, a ampliação de critérios para o
registro de cultos na Chancelaria, tendeu a equilibrar o peso terreno da
hierarquia católica argentina, e o mesmo fizeram medidas como a Lei do
Matrimônio Igualitário, de 2010. Ao mesmo tempo, o debate sobre o aborto livre,
seguro e gratuito, chegou à Câmara de Deputados. Mas os subsídios educativos
continuam e, no dia a dia, o ministro da Saúde, Juan Manzur, tem sensivelmente
menos entusiasmo pela realização e difusão de campanhas sobre contraconceptivos
do que seu antecessor no cargo, Ginés González García.
Um
papa latino-americano como o brasileiro Odilo Scherer ou como o argentino
Leonardo Sandri, ex-auxiliar do secretário de Estado, Angelo Sodano, virtual
primeiro ministro de João Paulo II, não soam como a melhor ajuda para separar a
Igreja, ou as igrejas, do Estado e tampouco parecem ser sinais de estímulos
para as mudanças que estão ocorrendo nos dois maiores países da América do Sul
desde 2003.
Oxalá
que nenhum cardeal da América latina chegue a Papa.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer